Republicação seleta (e levemente aperfeiçoada) dos textos de eutenhoumblog.blogger.com.br, blog que mantive dos 16 aos 19 anos, de 2003 a 2006. A ideia é que a repostagem seja na mesma data anterior (dia e mês, apenas dez anos depois). Nos comentários, eu falo do que me lembro da época em que escrevi, e avanço. Pra que o meu eu de então fique contente.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Lucas Ricardo

Uma história típica de filme de guerra. 

Lucas Ricardo era um herói da revolução. Ah, a revolução. Hoje, nenhuma pessoa se lembraria da revolução, exceto alguns historiadores obcecados, mas fora importante, e mudara a vida de centenas, milhares, bilhões de pessoas. E isso, se pararmos pra pensar, é bastante óbvio, senão não haveriam obcecados no assunto. 

Ou talvez houvesse. Existem obcecados por qualquer coisa, vai saber. 

O nosso soldado, Lucas Ricardo, era moreno, robusto, e, se estivesse vivo hoje, possuiria um número impressionante de cicatrizes. Marcas de guerra, seus troféus pessoais. Ele se orgulharia dos machucados antigos, assim como se orgulha dos seus bigodes, dos seus tênis Nike e do seu boné da Adidas. 

Diziam que ele se orgulhava tanto dos tênis que, na derradeira batalha da revolução, abandonou os coturnos e os vestiu, logrando vitória. E, dizem também (as pessoas realmente dizem coisas pra caramba) que, nas trincheiras, sob a luz do luar, enquanto alguns tocavam gaita e choravam, ele apenas punha sobre a cabeça o seu boné, e assim encontrava a paz. 

Lucas Ricardo, antes da guerra, trabalhara por demais. Fora ajudante de pedreiro, alfaiate, marceneiro e gandula. Vendera doces em ônibus e em meio de avenida, fizera exatamente cinco cursos profissionalizantes e começara a trabalhar em manutenção de computadores de dia, enquanto fazia telemarketing a noite. Dez anos depois ele tinha sua própria loja e um apartamento. Fez festa, ficou feliz e bebeu até cair. 

Dois dias depois a revolução começou e ele foi chamado, indo alegremente para a batalha.

O soldado tinha um tique nervoso que ficou evidenciado em uma das setenta e duas vezes em que foi capturado pelos inimigos (tendo conseguido fugir de todas após alguns ferimentos leves, e muitos outros graves). Coçava a orelha compulsivamente, e sempre seus dedos estavam amarelados. Lucas Ricardo era chamado de Dedos Amarelos no Gatilho. 

Ele foi chamado assim cerca de duas vezes, pois é um apelido bem grande. 

Tendo passado o tempo, em seu ardor de servir a nação, Lucas Ricardo cansou-se. "Foda-se tudo", ele disse. Poucos sabem, mas foi assim que se tornou herói de guerra: o grupo revolucionário estava sendo encurralado em um trem, e nosso soldado disse: "Vou sair e derrotá-los, não precisam esperar".

Por ventura, algum idiota explodiu uma bomba próxima demais de seu próprio grupo, e os revolucionários se viram ganhando. A ventura foi atribuída a Lucas, e ele seria louvado como herói, como eu disse, se não houvesse sido capturado pela septuagésima-terceira vez. Um soldado anti-revolucionário se viu perdendo e quis levar alguém preso. "Um otário eu levo", é o que os livros registram como tendo ele dito. 

O soldado herói apanhou, apanhou mais, quase foi afogado, arrancaram-lhe as unhas, quase foi afogado de novo e apanhou de novo. Mas Lucas Ricardo era homem de sorte, e acabou fugindo. Quando ele acordou, viu-se em frente a uma enfermeira de grupo amigo. 

Ela tinha cabelos curtos e uma verruga no nariz. E o primeiro pensamento de Lucas Ricardo foi: "Eu preciso fazer sexo".

Então, eles se casaram e foram felizes.

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