Republicação seleta (e levemente aperfeiçoada) dos textos de eutenhoumblog.blogger.com.br, blog que mantive dos 16 aos 19 anos, de 2003 a 2006. A ideia é que a repostagem seja na mesma data anterior (dia e mês, apenas dez anos depois). Nos comentários, eu falo do que me lembro da época em que escrevi, e avanço. Pra que o meu eu de então fique contente.

domingo, 3 de novembro de 2013

1984, George Orwell

Na tua sala de estar, acima de sua cabeça, na parede ao lado, um aparelho transmite sua programação costumeira. Canções militares, notícias, politicagem. O mesmo aparelho, ó, tecnologia, bela tecnologia que, bradam todos os filmes futuristas, há de nos enterrar um a um, até que nos revoltemos com alguns poucos - como dizia, o mesmo aparelho também recebe imagens. Em algum ponto do planeta, uma pessoa observa, ou não, disso não se pode ter certeza, suas ações.

O aparelho chama-se teletela, o local chama-se Oceania, uma das três grandes potências do mundo. A Oceania é regida pela entidade conhecida como Partido, controlada pelo semi-divino maestro, o Grande Irmão. Pela janela, podes observar um efígie do Grande Irmão, de pouco mais que um metro, e os dizeres: O Grande Irmão zela por ti.

Nesse mesmo momento, tu divagas. Pensas se um dia as coisas foram diferentes. Mas não se lembra. Os registros também não dizem nada a respeito. Só sabe-se que antes do Partido, houvera uma época sombria e miserável, nomeada Idade Média. O Partido libertara os proles e elevara o povo a uma vida melhor. Hoje não há leis na Oceania. Há o Ministério da Paz, que cuida da guerra, o Ministério do Amor que cuida das torturas...ainda há o Ministério da Fartura e o Ministério da Verdade.

Guerra é Paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.

Mas o que é isso? Será que sua face demonstrou desânimo diante da teletela? Não é recomendável demonstrar desânimo diante de uma teletela. Mas voltas ao seus pensamentos, agora pondo no rosto uma amostra de estático prazer. Lembras claramente de que a Oceania é inimiga da Lestásia e aliada da Eurásia, isso é um fato. Preparativos para a Semana do Ódio foram feitos e lá estão a face dos soldados lestasianos.

Sabe que há um inimigo, Goldstein, e ele está por aí, forjando intrigas, escondido em qualquer canto. E há muitos seguidores de Goldstein, mas a Polícia do Pensamento há de os prender, por crimidéia (em Novilíngua). E para quem cometia crimidéia o destino era, ou ser vaporizado, ou a tortura e condenamento de outros envolvidos com seu crime, ou o fuzilamento em praça pública para o divertimento das crianças e o êxtase das massas.

Mas, de fato, não era recomendável pensar em Goldstein. Chamava-se isso, crimedeter.

Então, a teletela dispara um grande som.

Um homem de voz taciturna informa a todos que o inimigo da Oceania é a Eurásia, e, por algum ataque noturno, sacana, dos agentes de Goldstein, todos os cartazes davam o inimigo, errado, mostrando a Lestásia, que era aliada.

Tu te lembras vagamente de um fato diferente. Mas devia esquecê-lo. Conscientemente disso, sabendo porque e ignorando as razões. E, é claro, esquecendo-se disso conscientemente, e deixando a consciência de lado. Era o duplipensar. E tens certeza de que em sua mesa, no trabalho do Ministério do Pensamento, haverão revistas, livros e outras evidências a serem reescritas. Logo, o passado sempre tinha sido daquele jeito, o inimigo sempre fora e sempre será a Eurásia. Não havia provas, e seria crimidéia dizer o contrário.

O passado é um palimpseto, a realidade é um Partido, eterno e onipotente, com mãos e olhos onipresentes.

Era realmente simples.

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